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Cultura de Borla

A Cultura que não tem preço.

"Um Inimigo do Povo" traz ao palco do CCVF um exercício de cidadania (29 outubro)

 

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Encenação de Tónan Quito, a partir do texto de Henrik Ibsen, é apresentada em Guimarães no dia 29 de outubro

 

Este sábado, 29 de outubro, às 21h30, Tónan Quito traz ao palco do Centro Cultural Vila Flor a peça “Um Inimigo do Povo”, baseada no texto homónimo de Henrik Ibsen, publicado em 1882. Uma obra de teor político, onde a linha entre ser-se herói ou vilão é demasiado ténue. Um texto de uma atualidade impressionante, que podia ter sido escrito nos dias que correm. No centro da peça, um confronto entre dois irmãos numa história densa cheia de ambiguidades. Tónan Quito propõe-nos um exercício de cidadania.

 

A peça que chega agora ao CCVF nasce de um dilema. Um médico, Dr. Stockmann, responsável pela estância balnear de uma cidade, descobre que as águas estão contaminadas. Decide então, depois de incentivado pelo diretor do jornal local, tornar essa informação pública. Por efeito do anúncio de tal calamidade, surgem consequências que o médico não previu e que são agora irreversíveis. O irmão do Dr. Stockmann é o Intendente da cidade (o que corresponde ao Presidente da Câmara) que vai apontar-lhe, sob a autoridade do seu cargo, as consequências da defesa de tal assunto, uma vez que uma notícia destas vai prejudicar a economia e, por conseguinte, as pessoas da comunidade. Se, por sua vez, o médico não abdica da denúncia da situação, por outra, também o Intendente não desiste da defesa da estabilidade financeira.

 

Aparentemente estamos perante duas posições opostas sobre um assunto delicado mas a forma como a peça se vai desenrolar desconstrói qualquer leitura mais simplista. O centro da peça acaba por ser esta ambiguidade, este questionamento constante do que é o certo e o errado, a conclusão de que, por vezes temos de mover-nos no cinzento porque nem tudo é preto e branco.

 

Ao longo da peça esbatem-se os contornos entre herói e vilão e questiona-se a solução que favoreça o coletivo. Assim, a questão das águas acaba por ser apenas o ponto de partida para se pensar muito mais longe, refletir sobre como se rege o comportamento em sociedade. Afinal, não só estas personagens são ambíguas, todos temos em nós alguma incoerência.

 

Pedro Gil, ator que interpreta o Dr. Stockmann, explica o quão desafiante é a interpretação deste texto de Ibsen: “No início, a nossa dúvida era se a peça não seria suficientemente ambígua. Acho que o Ibsen nesse aspeto é bastante ‘sa­cana’ porque faz parecer que é tudo muito cla­ro. No final, temos um herói trágico. O Ibsen mostra duas posições, e acho que a sacanice é como se dissesse: ‘Vocês estão do lado do doutor que quer defender a verdade, não é? Pois mais à frente na história, vejam onde isto o pode levar.’ Ele não faz o exercício imparcial de mostrar uma perspetiva e depois outra e, de algum modo, perguntar perante qual nos colocamos. Acabamos sempre sem pé. Por isso acho que é bastante pessimista, porque por regra todos preferimos a verdade à menti­ra ou à hipocrisia, mas o jogo é precisamente a manipulação dessa tendência.”

 

Para Tónan Quito, este texto, além de atual, abrange as questões que o inquietam como ser humano e como agente social: “Nós, como seres sociais, como família; nós e a sociedade; nós e a política. Acho que a escolha recai so­bre o que me inquieta e aquilo que acho inte­ressante ver e fazer. Continuar a pensar o quo­tidiano e os dias de hoje através destes textos que se focam sobre o que é isto de vivermos em sociedade, o que é isto de vivermos jun­tos? No final desta peça, Stockmann descobre: ‘o homem mais forte é aquele que está mais sozinho’. Não há esperança para uma vida so­cial, para a democracia? Essa é uma grande questão que surge aqui.”

 

“Um Inimigo do Povo” é um retrato da tensão existente entre o indivíduo e o coletivo, entre a verdade individual e a hipocrisia do coletivo, e a escolha que temos que fazer entre uma e outra, por vezes manipulados pela imprensa e pelo poder. Apesar de ser uma peça baseada na argumentação e na palavra, a sensação com que ficamos no fim é que temos de agir.